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24.8.07

"Whiskey is for drinking. Water is for fighting over". (1)


Ela permeia a música, a literatura, a pintura, a arquitetura, a religião, o imaginário coletivo e o nosso cotidiano e, por séculos e em diversas culturas, foi considerada como um bem inesgotável. Segundo dados do UNICEF, em todo o mundo estima-se que um bilhão de pessoas não tenha acesso a água potável e que cerca de 2,4 bilhões não tenham acesso a serviços de saneamento fazendo com que doenças de veiculação hídrica, como o cólera, esquistossomose, hepatite, verminose, entre outras, matem milhares de pessoas por ano, sendo as crianças sua principal vítima.

Há alguns anos o então vice-presidente do Banco Mundial para assuntos relacionados ao meio ambiente e presidente da Comissão Mundial da Água, Ismail Serageldin[2] declarou, de forma enfática e dura a celebre frase “As guerras do século XXI serão travadas por causa da água”. Mesmo criticado, ele nunca voltou atrás em sua afirmação. A ele juntaram-se chefes de Estado, como o rei Hussein da Jordânia[3], que tinha motivos de sobra para acreditar nessa possibilidade, afinal trata-se de um conflito milenar no Oriente Médio onde 85% da água disponível para cada país da região originam-se fora de suas fronteiras ou são provenientes de fontes compartilhadas[4].

Entretanto, existem outras correntes de pensamento. Apesar do problema potencial, muitos especialistas preferem acreditar na probabilidade de cooperação em torno dos recursos hídricos do que no conflito. Araaon Wolf, professor de geociências, da Universidade de Oregon (EUA), renomado especialista em administração de recursos hídricos e consultor do Departamento de Estado Americano para o Oriente Médio afirma que:

“(...) as tensões provocadas por disputas de reservas hídricas são muitas, mas a única guerra conhecida e que teve como ponto central uma questão envolvendo a água ocorreu na região onde atualmente encontra-se o Iraque e a Síria (bacia dos rios Tigre e Eufrates), entre duas cidades-estado (Lagash e Umma) há 4.500 anos”. (Araaon Wolf et al, 2003, p.30).

Mas, se a água não é claramente o ponto central ela é, certamente, um elemento de geoestratégia nas guerras da atualidade. Israel e outros países da região consideram a água como um assunto de segurança nacional e a história mostra que os conflitos em torno da água não se limitam a árabes e judeus. Egito, Sudão e Etiópia, Índia e Paquistão; Estados Unidos e México além do Brasil e Argentina já vivenciaram conflitos em torno do acesso à água.

Os conflitos relacionados à gestão de bacias hidrográficas em rios trans-fronteiriços são semelhantes aos rios de domínio da União ou dos Estados, divisão político-administrativa adotada pelo Brasil. As dimensões, contrastes climáticos, diversidade de ecossistemas, distribuição demográfica, condições sócio-econômicas e aspectos culturais-regionais fazem com que cada bacia hidrográfica seja única em diversos aspectos, mas todas enfrentam problemas semelhantes.

Comparado a outros países, o Brasil ocupa posição privilegiada no que ser refere à disponibilidade hídrica de suas bacias. Estima-se que em nosso território encontram-se 12% das reservas mundias. No entanto, percebe-se que 73% da água disponível em território brasileiro localiza-se na Amazônia, habitada por 4% da população e apenas 27% dos recursos hídricos está disponível para 96% da população restante.

A cultura errônea de abundância, distribuição geográfica irregular, degradação em virtude de ações antrópicas, tornaram a água imprópria para diversos usos e originou a necessidade de racionalização do uso deste recurso. A escassez não é mais uma característica apenas da região semi-árida. Em 2005 foi registrada a pior seca dos últimos 102 anos na região mais úmida do país, a Amazônia.

“ (...) Na maior reserva de água doce do mundo, a sede tem obrigado a população ribeirinha a enfrentar caminhadas de vários quilômetros – duas, três vezes por dia – até encontrar rios capazes de fornecer água potável. Sem falar da fome, um drama que, desta vez, atingiu milhares de famílias. Visitamos as maiores lagoas do estado do Amazonas e ficamos comovidos. Uma tragédia. Cardumes imensos boiando sobre os pequenos espelhos d'água. E a causa do desastre? Acredite: a alta temperatura dos rios, muito rasos, que acabam cozinhando, naturalmente, as espécies que ficaram presas. Quando não morriam escaldados no que parecia um "caldeirão", os peixes agonizavam em poças enlameadas. Levamos outro susto quando vimos homens pescando com as mãos (...)”. Relato do jornalista José Raimundo, O Globo Repórter, Rede Globo, 17/11/2005.


O fenômeno da seca foi o responsável pela introdução, no Brasil, de processos de gerenciamento de recursos hídricos, tendo como marco referencial o Código de Águas de 1934, primeira legislação a regulamentar o uso deste recurso no país. A nova Constituição Federal, promulgada em 1988, criou o cenário adequado à proposição de uma legislação mais abrangente. Após anos de tramitação no Congresso Nacional é aprovada a Lei 9.433, de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e canais descentralizados de participação por meio dos Conselhos Nacional e Estaduais de Recursos Hídricos e dos Comitês de Bacias Hidrográficas. A gestão das águas passa a ser realizada por bacias hidrográficas e com a participação do Estado, usuários privados e sociedade civil, “desaguando em um rico momento de exercício da cidadania” (Garjulli, 2002 ).

[1] “Whiskey é para beber; a água, para se travar batalhas.” - Mark Twain
[2] Atualmente Ismail Serageldin dirige a nova Biblioteca de Alexandria, no Egito.
[3] O rei Hussein da Jordânia faleceu em 1999.
[4] Cerca de 261 bacias fluviais em todo o mundo são compartilhadas por dois ou mais países.

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