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21.6.08

Informação técnica: insulante ou democratizante?

Dado e informação são considerados elementos fundamentais para o processo de comunicação. Podemos entender dados como elementos em estado bruto que se transformam em informação na medida em que são coletados, organizados, ordenados, relacionados e que se atribuem a eles significados em um determinado contexto. Dados podem ser trabalhados independentemente da existência do indivíduo enquanto a informação existe no contexto do usuário e tem por finalidade exercer algum impacto sobre o julgamento ou comportamento do receptor.
Alguns aspectos a serem considerados sobre a informação:
  • quantidade de informação: leva em conta a quantidade suficiente para a tomada de decisão e as restrições do homem como processador;
  • qualidade da informação: determina a motivação e contribui para a efetiva tomada de decisão;
  • satisfação: nível pelo qual o decisor se satisfaz com o resultado de um sistema de informações;
  • erros: medidas incorretas de dados e dos métodos de coleta, procedimento de processamento, falsificação etc.
  • vieses: distorções que uma vez identificadas podem ser eliminadas mediante ajustes.
  • valor da informação: associado ao custo e utilidade.

Mas quando a informação assume status de conhecimento? O conhecimento está estritamente relacionado à percepção do individuo, que codifica, decodifica e usa a informação de acordo com seus modelos mentais. Há sempre uma representação como prática discursiva. Os significados dominantes não são determinantes, mas são preferenciais, ou seja, não quer dizer que terão obrigatoriamente o mesmo significado por quem os recebe, pois não existe uma correspondência necessária entre codificação e decodificação. Porém, o debate em torno da importância da informação e do conhecimento na sociedade contemporânea abarca questões de fundo social, político e ético, além das de ordem econômica.

Na literatura disponível os termos e delimitações normalmente confundem-se. Informação “sobre o meio ambiente” é aquela que focaliza os fenômenos ambientais, de forma especializada e, informação “para as questões ambientais” como sendo aquela que se caracteriza por sua abrangência e natureza interdisciplinar e, principalmente, por sua capacidade de proporcionar uma análise crítica que se reverta em uma ação. Assim, optei pelo termo “Informação técnica” para designar informação “para as questões ambientais”.

A informação é condição sine qua non para a participação democrática e sua divulgação (incluindo a divulgação da informação científica) é essencial para a construção da democracia. Por este ângulo, a informação técnica é importante para que todos tomem ciência do meio em que vivem e das propostas, ao mesmo tempo em que deve contribuir para a construção e/ou atualização de uma opinião de modo que cada cidadão possa se posicionar de forma consciente diante de um processo de tomada de decisão.

Negociação de conflitos e compatibilização de interesses para implementação da cobrança pelo uso da água


No Brasil, não existe uma metodologia única para a cobrança pelo uso da água bruta. Na ausência de regulamentação sobre a questão em nível federal, observa-se que são, sobretudo as condições socioambientais, técnicas e políticas da bacia ou estado em questão que definem as características do sistema de cobrança. A cobrança na Bacia do rio Paraíba do Sul é profundamente distinta daquela iniciada, em 1996, no Estado do Ceará, por exemplo.

Iniciado formalmente pela ANA, em fevereiro de 2000, durante um encontro com usuários no município de Volta Redonda (RJ), o processo de negociação no âmbito do Comitê em torno da cobrança durou dois anos e as discussões, foram coordenadas pela Secretaria Executiva do CEIVAP, com apoio da ANA, girando em torno da metodologia, critérios e condições prévias à sua implementação. Por se tratar do instrumento mais polêmico de gestão de recursos hídricos, muitos desafios tiveram que ser transpostos, principalmente no que se refere à informação e mobilização dos atores, objetivando construir o que a ANA denominou de “pacto da sociedade em torno da melhoria da qualidade e quantidade das águas da bacia do Paraíba do Sul”.

Negociação de conflitos e compatibilização de interesses são pontos fundamentais na gestão de recursos hídricos. Gerenciar esta dinâmica na bacia do rio Paraíba do Sul, sem dúvidas, é um constante desafio, mesmo com o amadurecimento do processo, pois é necessário:
  • a convergência de objetivos;
  • o entendimento por todos os atores das questões e dos desafios envolvidos;
  • a criação de laços de confiança por meio de um processo de gestão ético, transparente e democrático que conduza à equidade, à racionalidade e à eficiência na tomada de decisões; e
  • a construção de um sentido de identidade da bacia, um sentido de unidade de atuação harmônica, de co-responsabilidade e de co-dependência.

Em busca do estabelecimento de um compromisso (ou pacto de gestão) em relação à cobrança, a Secretaria Executiva, por meio do Escritório Técnico do CEIVAP adotou como estratégia a promoção de seminários, eventos técnicos, reuniões formais do Comitê e de suas Câmaras Técnicas, para criar uma arena de discussão onde buscou-se fundamentalmente:

  • desmistificar e tornar conhecido esse instrumento de gestão em toda a bacia hidrográfica;
  • apresentar a metodologia e critérios de cobrança inicialmente propostos;
  • esclarecer e convencer os usuários de que não se tratava de mais uma taxa ou imposto;
  • esclarecer que o valor arrecadado seria efetivamente aplicado, integralmente, na bacia.

Consideramos o último item como o mais complexo uma vez que o Art. 22 da Lei 9.433/97 prevê que os “recursos da cobrança serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados”. A inclusão desse termo pode ter sido motivada pelas negociações com a área econômica do Governo Federal durante a aprovação do texto final da Lei 9.433/97 que, além de ávida por recursos, poderia não ter percebido o alcance da nova lei ou até mesmo não ter acreditado na implementação de alguns de seus princípios.

A proposta inicial chancelada pelo CEIVAP-ANA primava pela simplicidade conceitual e operacional, justificada por sua natureza transitória e pela possibilidade de aplicação em curto prazo, tendo em vista as limitações de informações básicas e consolidadas sobre o cadastro de usuários de água da bacia. Por outro lado, a simplicidade de cálculo propiciaria sua compreensão, diminuiria os riscos em relação a um impacto econômico significativo e facilitaria a aceitabilidade por parte dos usuários-pagadores.

Aprovada após deliberação em reunião de Câmaras Técnicas e pelo plenário do CEIVAP em março de 2001, a proposta inicial restringia-se aos setores diretamente relacionados ao principal problema da bacia: a poluição doméstica e industrial. Em cada setor foi proposta uma linha de corte, a partir do qual os usuários passariam a ser considerados pagadores:

  • serviços de água e esgoto de municípios com população superior a 10 mil habitantes;
  • as 40 maiores industrias poluidoras em cada um dos Estados integrantes da bacia do rio Paraíba do Sul.

Apesar da aprovação da proposta metodológica simplificada, havia um longo caminho a ser percorrido em termos de sensibilização e mobilização dos usuários potencialmente pagadores. A discussão aprofundada em torno das propostas metodológicas e dos critérios de cobrança ocorreu de março a dezembro de 2001. Sem dúvidas foi um momento extremamente rico em termos de participação ativa, luta pelo poder e cooperação experimentado pelo colegiado fazendo com que o processo de discussão fosse mais longo do que o estimado e muito mais complexo. Entretanto, ao contrário do que se poderia imaginar, surgiu desse processo um modelo muito mais sofisticado que o inicialmente proposto.

A metodologia para a bacia do rio Paraíba do Sul foi amplamente discutida no âmbito das Câmaras Técnicas do Comitê, momento em que incorporou as sugestões oriundas dos usuários. Os critérios de cobrança foram aprimorados e as condições técnicas foram transformadas em condições prévias consensadas no âmbito do CEIVAP. As condições deveriam ser plenamente cumpridas para o início da cobrança e o seu descumprimento, ou não efetivação, interromperia o processo. São elas:

  • Retorno dos recursos da cobrança à bacia do rio Paraíba do Sul: tratava-se da principal preocupação e foi manifestada por todos os segmentos. Essa questão foi resolvida por meio da criação da AGEVAP e da realização de um contrato de gestão entre a Agência e a ANA. Entretanto, no primeiro ano de cobrança os recursos foram contingenciados, mas em virtude de compromisso assumido pela ANA, o mesmo foi devolvido a bacia por meio dos recursos do orçamento da Agência reguladora.
  • Universalização da cobrança: a proposta inicial contemplava apenas as 40 maiores indústrias poluidoras dos três Estados e os serviços de saneamento de municípios com população superior a 10 mil habitantes. A universalização produziu um cronograma progressivo de adesão de outros setores, principalmente o agrícola, inclusão de todos os usuários industriais e domésticos além da transposição de águas da bacia do rio Paraíba do Sul para o rio Guandu (Sistema Light-Guandu), que abastece a cidade do Rio de Janeiro. Assim, constituem pagadores: indústrias, empresas de abastecimento público e esgotamento sanitário, agricultores, aqüicultores, pequenas centrais hidrelétricas (PCH’s) isentas de compensação financeira pelo setor elétrico e empresas mineradoras e aqueles previstos no Art. 12 da Lei 9.433/97.
  • Cadastro de usuários: esta diretamente relacionada à questão da universalização da cobrança. Embora possuindo um cadastro de usuários abrangente, os usos não se encontravam outorgados. Ter outorga significa estar sujeito a cobrança. Assim a ANA opta por fazer uma chama oficial dos usuários, em parceria com os Estados. A outorga refere-se a: captação, consumo e diluição de efluentes. Aquele que não procedesse à regularização de uso estaria sujeito a multas e as penalidades cabíveis.
  • Criação da Agência de Bacia do rio Paraíba do Sul: sua criação estava prevista, mas havia dúvidas sobre como ela se constituiria e qual seria sua natureza jurídica (ONG, OS, OCIP). A entidade criada para atuar como Agência de Bacia do Paraíba do Sul foi denominada de Associação Pró-Gestão das Águas da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul - AGEVAP. Braço executivo do CEIVAP, com personalidade jurídica, a AGEVAP, exerce o papel de secretaria executiva do Comitê sendo o Conselho de Administração formado por membros do CEIVAP.
  • Formatação e aprovação do Plano de Recursos Hídricos da bacia do rio Paraíba do Sul: o CEIVAP optou por utilizar o Projeto Qualidade das Águas (PQA) e do Projeto Inicial, que foram formatados e aprovados como “Plano de Recursos Hídricos da Bacia” de modo a atender as disposições da Lei 9433/97.

Dessa forma é possível verificar o claro aprimoramento em relação a proposta inicial cunhada pelo Laboratório de Hidrologia e Estudos do Meio Ambiente/Coppe/UFRJ. O aprimoramento se deu basicamente em relação ao universo de atores considerados “usuários-pagadores”, aos critérios de cobrança e às exigências em relação a sua aplicação. Em relação à aprovação da cobrança sobre a transposição das águas da bacia pelo Sistema Light-Guandu, que capta e consome até 180 m3/s (160 m3/s do rio Paraíba do Sul e cerca de 20 m3/s do rio Piraí), este tema tornou-se um dos pontos centrais da discussão e da negociação uma vez que o sistema constituiu-se no maior usuário das águas da bacia.

Após gerar energia elétrica as águas abastecem indústrias da região localizada fora da bacia do rio Paraíba do Sul, além da Cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, o Estado do Rio de Janeiro aprovou a Lei Estadual n° 4.247, que dispõe sobre a cobrança pelo uso da água em rios de domínio do Estado e prevê a aplicação obrigatória do percentual de 15% dos recursos arrecadados na bacia do Guandu na bacia do rio Paraíba do Sul. Este assunto é particularmente complexo sob vários aspectos e demandará, ainda, esforço de negociação

De forma geral é necessário ressaltar que todo o processo de negociação em torno da metodologia de cobrança produziu uma proposta metodológica absolutamente mais sofisticada que a proposta inicial apresentada pela Coppe/URFJ para início das discussões e que se traduziu na ampliação do universo de usuários-pagadores, aos critérios para a cobrança e as exigências, ou condições prévias, para seu início.


31.8.07

Implementação da cobrança pelo uso da água bruta

“Cuidado, pois quando falamos em dinheiro qualquer Secretário de Finanças ou Ministro toma osso de cachorro e biscoito de meninos... ‘Lo del água la água’ , dizem no México. Recurso de água é para água (...)” José Simas, Banco Mundial

Antes de tudo é necessário entender a que cobrança estamos nos referindo. É muito comum a expressão nos remeter diretamente à lembrança do pagamento da conta mensal de água que recebemos em nossas casas. Aquela cobrança, especificamente, diz respeito ao pagamento pelo serviço público de captação, tratamento e distribuição de água potável, assim como pela coleta e tratamento do esgoto doméstico, ou seja, diz respeito à prestação de serviço de saneamento.

A cobrança pelo uso da água a que nos referimos é a cobrança pelo uso do bem mineral “água”, em estado bruto nos rios, lagos, aqüíferos e reservatórios; É uma proposta de valorização econômica da água. Trata-se de um dos cinco instrumentos de gestão previstos na Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/97) e nas leis estaduais. Seu objetivo é a valoração (trata-se de um instrumento econômico!) e a racionalização do uso da água bruta por meio de fixação de preço para seu uso. A cobrança é sempre citada por autores e técnicos do setor como sendo o ponto polêmico do processo de gestão devido, principalmente, as dúvidas sobre a sua natureza (sob o ponto de vista jurídico) e sobre a transparência das informações relativas ao montante dos recursos arrecadados e sua utilização.

Sob o ponto de vista da Lei 9.433/97, a cobrança não pode ser considerada uma taxa ou um imposto uma vez que não se fundamenta em um sistema de arrecadação, mas em sistema de gestão que visa valorar a água para melhor conservá-la. Segundo o Artigo 16 do Código Tributário Nacional, “imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica relativa ao contribuinte”.

Assim, a cobrança pelo uso da água, no contexto da Lei 9.433/97, não pode ser considerada mais um imposto na medida em que é implementada por meio de um acordo social no âmbito dos comitês de bacias hidrográficas, cuja composição é tripartite (Estado, Sociedade Civil e Empresas). Portanto, implementá-la seria um ato de vontade e cidadania, assim:

“ (...) em tese, a cobrança seria o instrumento mais poderoso dos comitês, tanto no sentido de promover um uso mais racional da água, como para gerar recursos para ações e projetos de proteção e recuperação dos recursos hídricos”. (Abers e Keck, 2004).
A cobrança pelo uso da água bruta na bacia do rio Paraíba do Sul, localizada na região Sudeste do País, é pioneira no cenário nacional por incidir sobre águas de domínio da União. Seu início propiciou, de forma efetiva, a gestão de uma bacia de rio federal, segundo os princípios estabelecidos pela Lei 9.433/97. Seus objeivos principais são:
  • valorar a água e o seu uso racional sob os aspectos de qualidade e quantidade;
  • operacionalizar o sistema de gestão da bacia do Paraíba do Sul;
  • possibilitar a implementação das ações de gestão e recuperação ambiental hierarquizados no Plano de Recursos Hídricos;
  • assegurar a contrapartida financeira necessária à implementação do Programa Nacional de Despoluição de Bacias Hidrográficas - PRODES, promovido pela ANA.
A cobrança tem ainda caráter educativo e transitório, não somente pela simplicidade da proposta e pela opção de gradualidadade do seu aperfeiçoamento na bacia do Paraíba do Sul, mas pelo caráter excepcional a ela conferido pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos - CNRH, quando de sua aprovação em março de 2002, por tratar-se a época de assunto ainda não totalmente regulamentado em nível federal. A metodologia e critérios de cobrança adotados deverão vigorar por três anos a partir do início efetivo da cobrança.

28.8.07

Uma descentralização complexa: dominialidade dos corpos d'água e gestão de bacias hidrográficas

Existe um ponto de conflito entre a política construída para gerir as águas do País e a Carta Magna. A Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/97) definiu que a gestão dos recursos hídricos seria feita por bacias hidrográficas. Por outro lado, a Constituição de 1988 determina que a dominialidade seja por corpos d’água, ou seja, por rios, lagos, águas subterrâneas etc. Assim, temos dois níveis de domínio e um impasse a ser negociado. Os níveis de domínio são:
  1. domínio da União: lagos, rios e quaisquer correntes em terrenos de seu domínio ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros Países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como terrenos marginais e as praias fluviais. (Art. 20, inciso III);
  2. domínio dos Estados: águas superficiais e subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas nesse caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União (Art. 26, inciso I).

Portanto, o impasse a ser negociado gira em torno da gestão de bacias hidrográficas compartilhadas entre a União e os Estados. A bacia hidrográfica é um tipo de divisão geográfica que não se enquadra na divisão político-administrativa adotada pela Federação. No âmbito de uma bacia hidrográfica pode haver rios de domínio da União e dos Estados, como no caso das bacias dos rios Paraíba do Sul, São Francisco e Doce, por exemplo, cujo curso principal e principais afluentes são de domínio da União. A adoção da bacia hidrográfica como unidade de gestão, nesses casos, relaciona-se ao conceito de sistema, pois qualquer ação provocada em uma determinada área da bacia pode afetar outras áreas, uma vez que os rios e demais corpos d’água são interconectados.

A França, País em cujo modelo brasileiro de gestão de recursos hídricos foi fortemente inspirado, não apresentou esse tipo de problema quando da implementação de seu sistema de gestão de recursos hídricos por se tratar de um País unitário e não federativo. A inexistência de Estados, com legislações próprias, aliada aos aspectos culturais de base democrática e participativa facilitou o processo de gestão das águas naquele País, que dividiu seu território em seis unidades hidrográficas de gestão.

Em bacias compartilhadas no Brasil, a dupla dominialidade configura um sistema de gestão em duas esferas de atuação (Federal e Estadual)[1], que possuem a mesma missão institucional e são profundamente interdependentes no seu conteúdo e aplicação. A Lei 9.433/97 estabelece que a União articular-se-á com os Estados para o gerenciamento dos recursos hídricos de interesse comum; da mesma forma, as leis estaduais estabelecem que os Estados deverão se articular com a União, outros Estados e Municípios para o aproveitamento, controle e monitoramento dos recursos hídricos de interesse comum.

Porém, nenhum texto legal delineia ou detalha a forma como deve se dar essa articulação em bacias hidrográficas nacionais, seja no tocante aos instrumentos de gestão (outorga, fiscalização e cobrança) ou aos organismos de bacia (relação entre o comitê do rio principal e os comitês de rios afluentes, sob jurisdição federal ou estadual). Ou seja, a implantação e operacionalização do sistema de gestão e seus instrumentos em bacias nacionais, com vistas à recuperação, proteção, conservação e uso racional dos recursos hídricos, não é uma tarefa fácil. Faz-se necessário a concepção de estratégias operacionais para tornar possível a aplicação dos princípios, conceitos e instrumentos instituídos nas leis das águas vigentes, Federal e Estaduais, superando as incompatibilidades jurídico-administrativas e suprindo as omissões legais, mediante processos de negociação entre as partes envolvidas e preservando e aperfeiçoamento ao fundamentos da Política.

[1] Os Estados possuem competência exclusiva para legislar sobre tudo aquilo o que não for de competência privativa da União ou dos Municípios, isto porque a sua competência é residual enquanto dos outros dois entes federados é expressa.

A grande Lei das Águas: o modelo francês

Embora diversos países, como a Alemanha, a Holanda e Inglaterra, tenham desenvolvido metodologias e criado instrumentos jurídicos e institucionais para gerir adequadamente seus recursos hídricos, o Brasil inspirou-se no modelo francês para criar seu próprio sistema. Nas palavras de Lanna (1995) a lei francesa “é saudada hoje por especialistas internacionais em recursos hídricos e economistas ambientais como um dos instrumentos mais abrangentes e eficientes em matéria de gerenciamento de recursos hídricos”.

Em meados do século XX a França se vê diante do desafio de assegurar, em logo prazo, o abastecimento de água potável uma vez que os setores doméstico e industrial exigiam uma disponibilidade cada vez maior em virtude do desenvolvimento pós-guerra. Naquela época, o suprimento originava-se principalmente de mananciais subterrâneos, o que representava riscos em relação aos aspectos quantitativos e qualitativos. De acordo com Sironeau (1998) e Lanna (1995), este último aspecto era crítico em razão da poluição difusa associada às práticas agrícolas e a insuficiência de saneamento básico.

Diante desse fato a França aprova, em 16 de dezembro de 1964, a chamada “Grande Lei das Águas” como o objetivo de recuperar a qualidade das águas superficiais e dos rios costeiros. O objetivo prioritário dessa lei não foi a preservação ambiental, que na época não era tema em debate. O grande mérito da Lei das Águas, que instituiu a redevance (cobrança) foi à instituição de uma visão global em termos de qualidade e usos múltiplos. Ainda se segundo a autora, toda a estruturação do sistema francês só foi possível graças à aplicação de duas inovações propostas na Lei:

  • aplicação das recomendações da teoria econômica sobre a “internalização das externalidades”, por meio do qual se instituiu o sistema de cobrança pela poluição, que ficou mundialmente conhecido como princípio “poluidor-pagador”, recentemente adequado para “usuário-pagador”;
  • criação de condições institucionais específicas para a aplicação do instrumento econômico em todo o seu território: as Agências Financeiras de Bacias, que atualmente são denominadas de Agências de Água;
  • É importante ressaltar que esse organismo de gestão tem um campo de ação delimitado. Seu papel restringe-se a cobrança pelo uso da água e aplicação dos recursos arrecadados de acordo com as deliberações dos Comitês de Bacias. Sua atuação é controlada por um Conselho de Administração, composto por integrantes dos Comitês, estando ainda sob tutela do Estado, pois as Agências são consideradas instituições públicas do Estado Francês.

Mesmo decorridos mais de 40 anos, a concepção deste arranjo político-institucional ainda é questionado, do ponto de vista de sua constitucionalidade, por diversos juristas franceses uma vez que a base de cálculo para a cobrança pelo uso da água bruta e a deliberação sobre a aplicação dos recursos arrecadados não estão sob controle do poder legislativo contrariando, assim, as disposições constitucionais. Por outro lado, o sistema mostrou-se eficiente, contribuindo para o estabelecimento de um consenso tácito para se manter o status quo. No entanto, discussões recentes resultaram na decisão de submeter os planos de intervenção das agências de bacia ao Parlamento francês, de modo a resolver, definitivamente, essa questão; essa é a proposta do projeto de uma nova lei das águas em discussão na França atualmente.

24.8.07

"Whiskey is for drinking. Water is for fighting over". (1)


Ela permeia a música, a literatura, a pintura, a arquitetura, a religião, o imaginário coletivo e o nosso cotidiano e, por séculos e em diversas culturas, foi considerada como um bem inesgotável. Segundo dados do UNICEF, em todo o mundo estima-se que um bilhão de pessoas não tenha acesso a água potável e que cerca de 2,4 bilhões não tenham acesso a serviços de saneamento fazendo com que doenças de veiculação hídrica, como o cólera, esquistossomose, hepatite, verminose, entre outras, matem milhares de pessoas por ano, sendo as crianças sua principal vítima.

Há alguns anos o então vice-presidente do Banco Mundial para assuntos relacionados ao meio ambiente e presidente da Comissão Mundial da Água, Ismail Serageldin[2] declarou, de forma enfática e dura a celebre frase “As guerras do século XXI serão travadas por causa da água”. Mesmo criticado, ele nunca voltou atrás em sua afirmação. A ele juntaram-se chefes de Estado, como o rei Hussein da Jordânia[3], que tinha motivos de sobra para acreditar nessa possibilidade, afinal trata-se de um conflito milenar no Oriente Médio onde 85% da água disponível para cada país da região originam-se fora de suas fronteiras ou são provenientes de fontes compartilhadas[4].

Entretanto, existem outras correntes de pensamento. Apesar do problema potencial, muitos especialistas preferem acreditar na probabilidade de cooperação em torno dos recursos hídricos do que no conflito. Araaon Wolf, professor de geociências, da Universidade de Oregon (EUA), renomado especialista em administração de recursos hídricos e consultor do Departamento de Estado Americano para o Oriente Médio afirma que:

“(...) as tensões provocadas por disputas de reservas hídricas são muitas, mas a única guerra conhecida e que teve como ponto central uma questão envolvendo a água ocorreu na região onde atualmente encontra-se o Iraque e a Síria (bacia dos rios Tigre e Eufrates), entre duas cidades-estado (Lagash e Umma) há 4.500 anos”. (Araaon Wolf et al, 2003, p.30).

Mas, se a água não é claramente o ponto central ela é, certamente, um elemento de geoestratégia nas guerras da atualidade. Israel e outros países da região consideram a água como um assunto de segurança nacional e a história mostra que os conflitos em torno da água não se limitam a árabes e judeus. Egito, Sudão e Etiópia, Índia e Paquistão; Estados Unidos e México além do Brasil e Argentina já vivenciaram conflitos em torno do acesso à água.

Os conflitos relacionados à gestão de bacias hidrográficas em rios trans-fronteiriços são semelhantes aos rios de domínio da União ou dos Estados, divisão político-administrativa adotada pelo Brasil. As dimensões, contrastes climáticos, diversidade de ecossistemas, distribuição demográfica, condições sócio-econômicas e aspectos culturais-regionais fazem com que cada bacia hidrográfica seja única em diversos aspectos, mas todas enfrentam problemas semelhantes.

Comparado a outros países, o Brasil ocupa posição privilegiada no que ser refere à disponibilidade hídrica de suas bacias. Estima-se que em nosso território encontram-se 12% das reservas mundias. No entanto, percebe-se que 73% da água disponível em território brasileiro localiza-se na Amazônia, habitada por 4% da população e apenas 27% dos recursos hídricos está disponível para 96% da população restante.

A cultura errônea de abundância, distribuição geográfica irregular, degradação em virtude de ações antrópicas, tornaram a água imprópria para diversos usos e originou a necessidade de racionalização do uso deste recurso. A escassez não é mais uma característica apenas da região semi-árida. Em 2005 foi registrada a pior seca dos últimos 102 anos na região mais úmida do país, a Amazônia.

“ (...) Na maior reserva de água doce do mundo, a sede tem obrigado a população ribeirinha a enfrentar caminhadas de vários quilômetros – duas, três vezes por dia – até encontrar rios capazes de fornecer água potável. Sem falar da fome, um drama que, desta vez, atingiu milhares de famílias. Visitamos as maiores lagoas do estado do Amazonas e ficamos comovidos. Uma tragédia. Cardumes imensos boiando sobre os pequenos espelhos d'água. E a causa do desastre? Acredite: a alta temperatura dos rios, muito rasos, que acabam cozinhando, naturalmente, as espécies que ficaram presas. Quando não morriam escaldados no que parecia um "caldeirão", os peixes agonizavam em poças enlameadas. Levamos outro susto quando vimos homens pescando com as mãos (...)”. Relato do jornalista José Raimundo, O Globo Repórter, Rede Globo, 17/11/2005.


O fenômeno da seca foi o responsável pela introdução, no Brasil, de processos de gerenciamento de recursos hídricos, tendo como marco referencial o Código de Águas de 1934, primeira legislação a regulamentar o uso deste recurso no país. A nova Constituição Federal, promulgada em 1988, criou o cenário adequado à proposição de uma legislação mais abrangente. Após anos de tramitação no Congresso Nacional é aprovada a Lei 9.433, de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e canais descentralizados de participação por meio dos Conselhos Nacional e Estaduais de Recursos Hídricos e dos Comitês de Bacias Hidrográficas. A gestão das águas passa a ser realizada por bacias hidrográficas e com a participação do Estado, usuários privados e sociedade civil, “desaguando em um rico momento de exercício da cidadania” (Garjulli, 2002 ).

[1] “Whiskey é para beber; a água, para se travar batalhas.” - Mark Twain
[2] Atualmente Ismail Serageldin dirige a nova Biblioteca de Alexandria, no Egito.
[3] O rei Hussein da Jordânia faleceu em 1999.
[4] Cerca de 261 bacias fluviais em todo o mundo são compartilhadas por dois ou mais países.