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28.8.07

Uma descentralização complexa: dominialidade dos corpos d'água e gestão de bacias hidrográficas

Existe um ponto de conflito entre a política construída para gerir as águas do País e a Carta Magna. A Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/97) definiu que a gestão dos recursos hídricos seria feita por bacias hidrográficas. Por outro lado, a Constituição de 1988 determina que a dominialidade seja por corpos d’água, ou seja, por rios, lagos, águas subterrâneas etc. Assim, temos dois níveis de domínio e um impasse a ser negociado. Os níveis de domínio são:
  1. domínio da União: lagos, rios e quaisquer correntes em terrenos de seu domínio ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros Países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como terrenos marginais e as praias fluviais. (Art. 20, inciso III);
  2. domínio dos Estados: águas superficiais e subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas nesse caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União (Art. 26, inciso I).

Portanto, o impasse a ser negociado gira em torno da gestão de bacias hidrográficas compartilhadas entre a União e os Estados. A bacia hidrográfica é um tipo de divisão geográfica que não se enquadra na divisão político-administrativa adotada pela Federação. No âmbito de uma bacia hidrográfica pode haver rios de domínio da União e dos Estados, como no caso das bacias dos rios Paraíba do Sul, São Francisco e Doce, por exemplo, cujo curso principal e principais afluentes são de domínio da União. A adoção da bacia hidrográfica como unidade de gestão, nesses casos, relaciona-se ao conceito de sistema, pois qualquer ação provocada em uma determinada área da bacia pode afetar outras áreas, uma vez que os rios e demais corpos d’água são interconectados.

A França, País em cujo modelo brasileiro de gestão de recursos hídricos foi fortemente inspirado, não apresentou esse tipo de problema quando da implementação de seu sistema de gestão de recursos hídricos por se tratar de um País unitário e não federativo. A inexistência de Estados, com legislações próprias, aliada aos aspectos culturais de base democrática e participativa facilitou o processo de gestão das águas naquele País, que dividiu seu território em seis unidades hidrográficas de gestão.

Em bacias compartilhadas no Brasil, a dupla dominialidade configura um sistema de gestão em duas esferas de atuação (Federal e Estadual)[1], que possuem a mesma missão institucional e são profundamente interdependentes no seu conteúdo e aplicação. A Lei 9.433/97 estabelece que a União articular-se-á com os Estados para o gerenciamento dos recursos hídricos de interesse comum; da mesma forma, as leis estaduais estabelecem que os Estados deverão se articular com a União, outros Estados e Municípios para o aproveitamento, controle e monitoramento dos recursos hídricos de interesse comum.

Porém, nenhum texto legal delineia ou detalha a forma como deve se dar essa articulação em bacias hidrográficas nacionais, seja no tocante aos instrumentos de gestão (outorga, fiscalização e cobrança) ou aos organismos de bacia (relação entre o comitê do rio principal e os comitês de rios afluentes, sob jurisdição federal ou estadual). Ou seja, a implantação e operacionalização do sistema de gestão e seus instrumentos em bacias nacionais, com vistas à recuperação, proteção, conservação e uso racional dos recursos hídricos, não é uma tarefa fácil. Faz-se necessário a concepção de estratégias operacionais para tornar possível a aplicação dos princípios, conceitos e instrumentos instituídos nas leis das águas vigentes, Federal e Estaduais, superando as incompatibilidades jurídico-administrativas e suprindo as omissões legais, mediante processos de negociação entre as partes envolvidas e preservando e aperfeiçoamento ao fundamentos da Política.

[1] Os Estados possuem competência exclusiva para legislar sobre tudo aquilo o que não for de competência privativa da União ou dos Municípios, isto porque a sua competência é residual enquanto dos outros dois entes federados é expressa.

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