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21.6.08

Negociação de conflitos e compatibilização de interesses para implementação da cobrança pelo uso da água


No Brasil, não existe uma metodologia única para a cobrança pelo uso da água bruta. Na ausência de regulamentação sobre a questão em nível federal, observa-se que são, sobretudo as condições socioambientais, técnicas e políticas da bacia ou estado em questão que definem as características do sistema de cobrança. A cobrança na Bacia do rio Paraíba do Sul é profundamente distinta daquela iniciada, em 1996, no Estado do Ceará, por exemplo.

Iniciado formalmente pela ANA, em fevereiro de 2000, durante um encontro com usuários no município de Volta Redonda (RJ), o processo de negociação no âmbito do Comitê em torno da cobrança durou dois anos e as discussões, foram coordenadas pela Secretaria Executiva do CEIVAP, com apoio da ANA, girando em torno da metodologia, critérios e condições prévias à sua implementação. Por se tratar do instrumento mais polêmico de gestão de recursos hídricos, muitos desafios tiveram que ser transpostos, principalmente no que se refere à informação e mobilização dos atores, objetivando construir o que a ANA denominou de “pacto da sociedade em torno da melhoria da qualidade e quantidade das águas da bacia do Paraíba do Sul”.

Negociação de conflitos e compatibilização de interesses são pontos fundamentais na gestão de recursos hídricos. Gerenciar esta dinâmica na bacia do rio Paraíba do Sul, sem dúvidas, é um constante desafio, mesmo com o amadurecimento do processo, pois é necessário:
  • a convergência de objetivos;
  • o entendimento por todos os atores das questões e dos desafios envolvidos;
  • a criação de laços de confiança por meio de um processo de gestão ético, transparente e democrático que conduza à equidade, à racionalidade e à eficiência na tomada de decisões; e
  • a construção de um sentido de identidade da bacia, um sentido de unidade de atuação harmônica, de co-responsabilidade e de co-dependência.

Em busca do estabelecimento de um compromisso (ou pacto de gestão) em relação à cobrança, a Secretaria Executiva, por meio do Escritório Técnico do CEIVAP adotou como estratégia a promoção de seminários, eventos técnicos, reuniões formais do Comitê e de suas Câmaras Técnicas, para criar uma arena de discussão onde buscou-se fundamentalmente:

  • desmistificar e tornar conhecido esse instrumento de gestão em toda a bacia hidrográfica;
  • apresentar a metodologia e critérios de cobrança inicialmente propostos;
  • esclarecer e convencer os usuários de que não se tratava de mais uma taxa ou imposto;
  • esclarecer que o valor arrecadado seria efetivamente aplicado, integralmente, na bacia.

Consideramos o último item como o mais complexo uma vez que o Art. 22 da Lei 9.433/97 prevê que os “recursos da cobrança serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados”. A inclusão desse termo pode ter sido motivada pelas negociações com a área econômica do Governo Federal durante a aprovação do texto final da Lei 9.433/97 que, além de ávida por recursos, poderia não ter percebido o alcance da nova lei ou até mesmo não ter acreditado na implementação de alguns de seus princípios.

A proposta inicial chancelada pelo CEIVAP-ANA primava pela simplicidade conceitual e operacional, justificada por sua natureza transitória e pela possibilidade de aplicação em curto prazo, tendo em vista as limitações de informações básicas e consolidadas sobre o cadastro de usuários de água da bacia. Por outro lado, a simplicidade de cálculo propiciaria sua compreensão, diminuiria os riscos em relação a um impacto econômico significativo e facilitaria a aceitabilidade por parte dos usuários-pagadores.

Aprovada após deliberação em reunião de Câmaras Técnicas e pelo plenário do CEIVAP em março de 2001, a proposta inicial restringia-se aos setores diretamente relacionados ao principal problema da bacia: a poluição doméstica e industrial. Em cada setor foi proposta uma linha de corte, a partir do qual os usuários passariam a ser considerados pagadores:

  • serviços de água e esgoto de municípios com população superior a 10 mil habitantes;
  • as 40 maiores industrias poluidoras em cada um dos Estados integrantes da bacia do rio Paraíba do Sul.

Apesar da aprovação da proposta metodológica simplificada, havia um longo caminho a ser percorrido em termos de sensibilização e mobilização dos usuários potencialmente pagadores. A discussão aprofundada em torno das propostas metodológicas e dos critérios de cobrança ocorreu de março a dezembro de 2001. Sem dúvidas foi um momento extremamente rico em termos de participação ativa, luta pelo poder e cooperação experimentado pelo colegiado fazendo com que o processo de discussão fosse mais longo do que o estimado e muito mais complexo. Entretanto, ao contrário do que se poderia imaginar, surgiu desse processo um modelo muito mais sofisticado que o inicialmente proposto.

A metodologia para a bacia do rio Paraíba do Sul foi amplamente discutida no âmbito das Câmaras Técnicas do Comitê, momento em que incorporou as sugestões oriundas dos usuários. Os critérios de cobrança foram aprimorados e as condições técnicas foram transformadas em condições prévias consensadas no âmbito do CEIVAP. As condições deveriam ser plenamente cumpridas para o início da cobrança e o seu descumprimento, ou não efetivação, interromperia o processo. São elas:

  • Retorno dos recursos da cobrança à bacia do rio Paraíba do Sul: tratava-se da principal preocupação e foi manifestada por todos os segmentos. Essa questão foi resolvida por meio da criação da AGEVAP e da realização de um contrato de gestão entre a Agência e a ANA. Entretanto, no primeiro ano de cobrança os recursos foram contingenciados, mas em virtude de compromisso assumido pela ANA, o mesmo foi devolvido a bacia por meio dos recursos do orçamento da Agência reguladora.
  • Universalização da cobrança: a proposta inicial contemplava apenas as 40 maiores indústrias poluidoras dos três Estados e os serviços de saneamento de municípios com população superior a 10 mil habitantes. A universalização produziu um cronograma progressivo de adesão de outros setores, principalmente o agrícola, inclusão de todos os usuários industriais e domésticos além da transposição de águas da bacia do rio Paraíba do Sul para o rio Guandu (Sistema Light-Guandu), que abastece a cidade do Rio de Janeiro. Assim, constituem pagadores: indústrias, empresas de abastecimento público e esgotamento sanitário, agricultores, aqüicultores, pequenas centrais hidrelétricas (PCH’s) isentas de compensação financeira pelo setor elétrico e empresas mineradoras e aqueles previstos no Art. 12 da Lei 9.433/97.
  • Cadastro de usuários: esta diretamente relacionada à questão da universalização da cobrança. Embora possuindo um cadastro de usuários abrangente, os usos não se encontravam outorgados. Ter outorga significa estar sujeito a cobrança. Assim a ANA opta por fazer uma chama oficial dos usuários, em parceria com os Estados. A outorga refere-se a: captação, consumo e diluição de efluentes. Aquele que não procedesse à regularização de uso estaria sujeito a multas e as penalidades cabíveis.
  • Criação da Agência de Bacia do rio Paraíba do Sul: sua criação estava prevista, mas havia dúvidas sobre como ela se constituiria e qual seria sua natureza jurídica (ONG, OS, OCIP). A entidade criada para atuar como Agência de Bacia do Paraíba do Sul foi denominada de Associação Pró-Gestão das Águas da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul - AGEVAP. Braço executivo do CEIVAP, com personalidade jurídica, a AGEVAP, exerce o papel de secretaria executiva do Comitê sendo o Conselho de Administração formado por membros do CEIVAP.
  • Formatação e aprovação do Plano de Recursos Hídricos da bacia do rio Paraíba do Sul: o CEIVAP optou por utilizar o Projeto Qualidade das Águas (PQA) e do Projeto Inicial, que foram formatados e aprovados como “Plano de Recursos Hídricos da Bacia” de modo a atender as disposições da Lei 9433/97.

Dessa forma é possível verificar o claro aprimoramento em relação a proposta inicial cunhada pelo Laboratório de Hidrologia e Estudos do Meio Ambiente/Coppe/UFRJ. O aprimoramento se deu basicamente em relação ao universo de atores considerados “usuários-pagadores”, aos critérios de cobrança e às exigências em relação a sua aplicação. Em relação à aprovação da cobrança sobre a transposição das águas da bacia pelo Sistema Light-Guandu, que capta e consome até 180 m3/s (160 m3/s do rio Paraíba do Sul e cerca de 20 m3/s do rio Piraí), este tema tornou-se um dos pontos centrais da discussão e da negociação uma vez que o sistema constituiu-se no maior usuário das águas da bacia.

Após gerar energia elétrica as águas abastecem indústrias da região localizada fora da bacia do rio Paraíba do Sul, além da Cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, o Estado do Rio de Janeiro aprovou a Lei Estadual n° 4.247, que dispõe sobre a cobrança pelo uso da água em rios de domínio do Estado e prevê a aplicação obrigatória do percentual de 15% dos recursos arrecadados na bacia do Guandu na bacia do rio Paraíba do Sul. Este assunto é particularmente complexo sob vários aspectos e demandará, ainda, esforço de negociação

De forma geral é necessário ressaltar que todo o processo de negociação em torno da metodologia de cobrança produziu uma proposta metodológica absolutamente mais sofisticada que a proposta inicial apresentada pela Coppe/URFJ para início das discussões e que se traduziu na ampliação do universo de usuários-pagadores, aos critérios para a cobrança e as exigências, ou condições prévias, para seu início.


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